Os meninos à volta da fogueira
A eleição de Bolsonaro como presidente do Brasil acordou em mim a lembrança desta música que tanto ouvia na minha infância.
Com letra de Rui Monteiro, a canção teve vários interpretes, mas é a versão cantada por Paulo de Carvalho que eu mais adoro.
"Com fios feitos de lágrimas passadas
Os meninos de Huambo fazem alegria
Constroem sonhos com os mais velhos de mãos dadas
E no céu descobrem estrelas de magia
Com os lábios de dizer nova poesia
Soletram as estrelas como letras
E vão juntando no céu como pedrinhas
Estrelas letras para fazer novas palavras"
Os meninos à volta da fogueira
Vão aprender coisas de sonho e de verdade
Vão aprender como se ganha uma bandeira
Vão saber o que custou a liberdade"
A música era sobre África, mas pode aplicar-se a todas as partes do mundo. Pode aplicar-se a todos os homens e a todos lugares onde a liberdade andou perdida e foi reconquistada a pulso.
Regressando ao Brasil, percebo as razões que levaram 55% das pessoas a votar Bolsonaro. Sei que estão fartos da corrupção e dos escândalos que envolveram nos últimos anos os partidos de esquerda. Sei que estão ansiosos por uma mudança drástica num país que continua a ter umas das maiores taxas de pobreza e de violência do mundo.
Mas não sei, sinceramente, se Bolsonaro poderá dar aos brasileiros o que eles tanto merecem. Sejamos francos: a história ensina-nos que um presidente ligado à xenofobia e discriminação, não augura nada bom.
Neste caso, a ética do "mal menor" não deve ser usada. Bolsonaro não é o menor mal dentro da podridão da política brasileira. Poderá ser até o pior dos males. Só quem é cego não vê.
Custa-me que os brasileiros se entreguem, no auge do desespero, a uma espécie de carrasco que promete mudar tudo, em troca da anulação de direitos fundamentais da humanidade.
"Palavras sempre novas, sempre novas
Palavras deste tempo sempre novo
Porque os meninos inventaram coisas novas
E até já dizem que as estrelas são do povo"
Não sei os meninos deste novo Brasil terão direito a ser donos de estrelas. Temo que um dia acordem para perceber que já não são donos de nada. Que tudo lhes foi tirado. Até mesmo a voz.
No Brasil dos próximos anos haverá certamente "meninos à volta da fogueira": no braseiro onde se queimou a democracia, os que votaram Bolsanaro vão estar abraçados, amparando-se na dor.
O fumo da fogueira vai secar as lágrimas e ninguém vai saber que sofrem.
Com as mãos cheias de cinzas de um Brasil que se perdeu, os "meninos" vão maldizer o dia em que deixaram fugir a liberdade.