A solidão mora ao lado
Esta semana, estava na fila de uma caixa de hipermercado à espera para pagar as minhas compras quando a senhora que estava à minha frente (e que, até ali, tinha estada serenamente calada) começou a falar:
- Sabe - disse a senhora virada para a menina da caixa - levo comida para mim e para o meu touro. É um touro amarelo, lindo de morrer. Ai que lindo que ele é! O meu touro...
A menina da caixa continuou a passar os itens no leitor de códigos de barras. Na sua juventude despreocupada, ignorou a conversa da mulher.
Eu tambem estava com ganas de ignorar. Mas como estava mesmo à minha frente pude reparar bem. A senhora que encetou a conversa devia ter para aí uns 65 anos. Já com cabelos brancos, pele enrugada, mas com um ar distinto e bem cuidado. Parecendo não reparar na impaciência das pessoas à sua volta, continuou a falar com um vigor estranho:
- Bem... na realidade eu não moro com um touro. É um gato amarelo! Mas come tanto, tanto, tanto, que parece um touro. Ai, os sacos de comida que eu tenho que levar para ele. Estoura-me o ordenado. Ai, o maroto. Ai!
A menina da caixa olhou para mim rebolando os olhos. As pessoas da fila trocaram olhares de desprezo cúmplice. E eu só pensava: pronto, mais uma louca que fala sozinha...
A mulher continuou falando, agora virada para as pessoas da fila, parecendo contente por ter uma plateia:
- Sabem que no outro dia umas pessoas conhecidas perguntaram-me se eu não tinha medo de viver sozinha... Eu respondi-lhes: eu não vivo sozinha. Vivo com um gato e com um canário. Já somos três!
Segura nos sacos de compras e vira costas, mas antes ainda atira:
- E sabem que mais? Que bem que estamos os três! E que rico concerto fazemos. O canário canta, o gato mia... e eu choro. É mesmo assim. Um a cantar para um lado, outro a miar como um touro e eu a chorar pela minha vida. Olhem, sabem que mais? Adeus!
A solidão está em toda e parte. Não podemos ignora-la. E quando queremos fazer de conta que não existe é ela própria que se manifesta e que vem ter connosco. Na rua, no trabalho, na caixa de um hipermercado. Não interessa.
Podemos fazer de conta que não a vemos. Podemos passar para o outro lado da rua quando reparamos nela.
Como se distância conseguisse evitar o contágio. Como se a indiferença fingida conseguisse elimina-la do mapa.
Podemos tentar tudo. Ou não tentar nada. É igual.
Senti-me triste pela solidão da mulher. Pensei redimir-me do meu anterior desprezo e ir atrás dela para a ajudar com os sacos.
Dei um passo na direção do corredor, mas não fui a tempo. Tão depressa como tinha chegado, a solidão personificada atravessou a porta do supermercado e saiu para o frio. Adeus!
Adeus solidão. Ou até já.
Que a vida é curta. E eu nem sequer tenho um canário.